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Monday, October 23, 2023

Não existe carinho fora da humanidade

 



Três latas de cerveja barata e um KitKat.

"Senhor, posso orar por você?", me perguntou uma jovem no meio do supermercado Atacadão. Disse ser missionária e que seu dever era orar pelas pessoas; que Deus lhe deu um chamado para orar por mim.

Eu perguntei "por causa da minha cerveja? Ou do chocolate?"

Hahahahaha ela achou divertido, disse que não tinha notado essas coisas, que simplesmente havia sido intuída a orar por mim. Perguntou o que deveria pedir por mim junto ao Criador, eu disse que nada em especial - fez uma breve oração pela minha vida.

Em seguida me mostrou os livros que estava vendendo, eu me despedi elegantemente e continuei minhas compras (que foram além da cerveja e do KitKat, algumas frutas).

Já parou para pensar que não existe carinho fora da humanidade?

Os mamíferos, via de regra, parecem dedicar carinho uns aos outros, mas é um carinho diferente dos seres humanos. Muito diferente, para falar a verdade. Entre os humanos existe algo impossível aos animais, por mais desenvolvidos que sejam, chamado "bem-querer". 

"Meu bem-querer é segredo, é sagrado, está sacramentado em meu coração" já dizia Djavan de forma bastante assertiva.

Na busca por emancipação ou aprimoramento espiritual, uma significativa parcela das pessoas erram logo de início. É um erro conceitual: elas tomam por espirituais as regras de convívio sociais; tomam por mandamentos os elementos meramente culturaais do nosso tempo.

Se à luz da cultura vigente, em 2023, uma pessoa que nunca teve um bom emprego é alguém menos importante do que aqueles que sempre se posicionaram bem profissionalmente, nada isso diz acerca da qualidade espiritual de ambos. Assumir que aqueles "mais bem resolvidos" são os "mais evoluídos" é um erro dos mais grosseiros que se possa conceber. É tomar a regra mundana por mandamento espirutal.

Normalmente isso faz o sujeito despencar numa espiral de tal sorte que, sendo de fato alguém esclarecido, precisará de diversas encarnações para desfazer tal mal entendido. A pessoa passa toda uma vida se dedicando "à espiritualidade" e para seu espanto, após a morte reencarna - como materialista, egoísta, mesquinho. E ao desencarnar materialista décadas mais tarde, descrente da vida após a morte, reencarna - como místico, devoto de qualquer fantasia que lhe apeteça a libido sublimada em fictícia ou hipotética espiritualidade.

E ao desencarnar não irá ao "Trono dos Mestres", mas reencarnará e viverá uma vida meio que às cegas, como alguém que somente reage à vida sem dela criar reflexão alguma. E ao falecer, se verá envolto pelas perguntas que não fez em vida, pelas dúvidas que talvez devesse ter suscitado em vida. E reencarnará, talvez como algum tipo de mentor ou professor de algo que verdadeiramente tal pessoa não compreende. E ao morrer reencarnará como uma pessoa que acredita que a espiritualidade é regida pelas regras mundanas de sucesso, conquista, mérito... ou que tais coisas mundanas são o grande objetivo da vida e fator de segregação entre "vencedores" e "perdedores", mal sabendo eles que ao morrerem...

O ciclo seguirá até dali a muitas iterações, literalmente ao longo de milênios em nossa linha do tempo, até o momento em que a pessoa entenderá que o carinho emana da humanidade e que ali é a única fonte de tal nutriente espiritual fundamental ao progresso espiritual das criaturas humanas. Sem carinho, sem evolução (lamento, mas é assim que fomos construídos pela natureza).

Quantas pessoas boas conhecemos nestas condições? Ou seja, em situações interciclícas de encarnação?

Pois é, não é louvável interferir neste processo, que pode ser abreviado através do conhecimento e da mudança de hábitos, atitudes e valores. Caso contrário, o grande ciclo de encarnações em que, de diferentes formas, se experimenta um profundo vazio de significado continuará. Até o dia em que estiver com suas três latas de cerveja na mão.

Antes que os maliciosos digam que é apologia ao alcoolismo, sugiro um texto da wikipedia muito bom, sobre um recurso literário chamado metonímia. Leiam e aprendam, pessoas maliciosas.

Metonímia - Wikipedia


Tem algo que eu não contei da história das cervejas.

Eu as escolhi dentre as mais baratas. Ao chegar no respectivo setor, duas senhoras bem simples estavam escolhendo suas cervejas. Eu dei boa noite e de forma bem humorada perguntei se elas conheciam cervejas de marcas muito obscuras, às quais eu tinha receio de comprar. Elas foram simpáticas e brincaram comigo dizendo que eu estava jogando latas nelas, porque esbarrei em algumas que cairam em seu carrinho.

Elas me aconselharam a comprar Skol Puro Malte, porque era Skol e estava num preço similar às coisas estranhas que estava prestes a comprar. Mais um dia normal no meio da humanidade, né?

Mais um dia em que fui acolhido, orientado e de certa forma recebi carinho e dei um pouco de carinho, na sua forma mais intensa, que é a atenção. Dei-lhes atenção e elas me deram a sua atenção. Carinho.

Não por acaso, o oposto  à evolução espiritual é o emprego malicioso ou maldoso da atenção, quando alguém tenta prender a atenção dos outros para um fim torpe, como enriquecer a si mesmo às custas do sofrimento e sacrifício dos demais. É o que vemos em redes sociais e na internet: pessoas fazendo de tudo para chamarem a atenção dos internautas, usando e abusando de estimulação de baixa qualidade emocional, rústica, primitiva, grosseira, estimulando-os ao ponto de agirem sem criarem real juízo do que estão fazendo. E a seguir tentam vender uma sequencia de produtos inúteis e dispostos progressivamente em valor financeiro, que nada ou bem pouco ajudarão seus compradores, mas enriquecerão tremendamente seus vendedores.

Aí o "empreendedor digital" bem sucedido vem a falecer, daqui a meio século. Terá um velório bonito, vai acompanhar ao lado do corpo seu sepultamento e até verá anjos e seres de luz. Mas o resultado de uma vida isenta de reflexões espirituais e pobre em carinho (atenção genuína, gratuita, espontânea) será mais uma volta do grande ciclo de encarnações sem sentido, até o dia em que estiver com suas três latinhas de cerveja na mão... (mais metonímia, ok?).

Para fechar esse texto, devemos responder a pergunta: qual é o ponto de virada?

É quando fica claro que os seres humanos demandam oxigênio, água, alimento... e carinho (atenção genuína, espontânea, autêntica). Não precisamos de um palco para sentirmos acolhidos e nem mesmo de um abraço, ou palavras reconfortantes.

Pode ser uma pessoa estranha te dizendo que a cerveja que você iria comprar não vale a pena, que é melhor pegar uma outra 20 centavos mais cara. Pode ser uma pessoa te parando no meio do supermercado para fazer uma oração por você. Pode ser uma pessoa amiga que decide passar alguns minutos, horas ou dias com você, abrindo mão de outros interesses e afazeres somente pelo prazer da sua companhia. Pode ser um filho que te abraça pedindo colinho, ou que você abraça desejando que tudo corra bem na aula.

Carinho.

Quando a pessoa começa a perceber isso é porque ela desenvolveu seu verdadeiro sexto sentido. Assim como é difícil explicar a um cego de nascença como são as cores, mas é óbvio aos que enxergam normalmente fazê-lo, é difícil explicar aos que ainda não despertaram tal sexto sentido o que ele faz da nossa percepção da realidade. Assim como sentimos cheiro a todo tempo, mas nem sempre o cheiro é bom, ou indicativo de boa coisa, o mesmo ocorre com o carinho - sentímo-lo todo o tempo, mas em diferentes gradações.

E da mesma forma que o bebê cheira de tudo até entender que nem tudo deve ser cheirado, quem começou, espontaneamente a sentir o carinho em tudo pode demandar uma fase de adaptação até entender como agir em relação a tal coisa.

Curiosamente o carinho não faz sentir sozinho, é exatamente o oposto disso, mas poucos são aqueles que de fato despertaram o sexto sentido. Paradoxo interessante: aqueles que em tese seriam solitários por não corresponderem à maioria das pessoas em termos de percepção e comportamento, são justamente os que nunca sentem sozinhos pois o carinho está por toda parte.

Interessante. Mais coisas para pensar.




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